terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O Curioso Caso de Hurbinek

Fitzgerald torna-se filme, pelo seu livro O Curioso Caso de Benjamin Button, de 1922, com Brad Pitt como o personagem principal. Uma criança que nasce velha e se torna criança na velhice. Me fez lembrar Primo Levi, na sua homenagem ao pequeno Hurbinek, uma criança de três anos que sobreviveu por poucos dias após a chegada dos Russos no campo de concentração em Auschwitz, no relato de seu romance Se este é um homem.
Filho da morte, Hurbinek foi uma velha criança na concepção da sua própria personalidade. Forte, incisivo, deixou de lado os prognósticos mórbidos de qualquer sobrevivente dos campos alemães. Nasceu fraco, paralisado dos rins para baixo, sem falar, sem chorar, sem emitir qualquer ruído sequer de uma pura necessidade à vida. Seu choro era pelos olhos. Levi conta que Hurbinek possuía olhos terrivelmente vivos, plenos de perguntas, para desencadear vontades e de romper a tumba do mutismo.
Seu nome foi dado, diz Levi, por alguma enfermeira que escutara seus curtos grunhidos, sua forma tosca de falar e dizer alguma coisa nada agradável sobre o mundo que lhe foi destinado. Sua emergência em sobreviver estava se exaurindo, quando Levi encontrou-o em uma das centenas de salas de enfermaria, junto com mais de cinco mil judeus sobreviventes de Auschwitz.
O olhar de Hurbinek era maduro, diz Levi, selvagem, que ninguém ali conseguia sustentar. Olhos velhos, maduros. Hurbinek vencera a morte, com seqüelas intermináveis, havia perdido o corpo que o pariu e que alguém ali lhe dizia ser o cadáver de sua mãe. Talvez Hurbinek tenha tido a infeliz necessidade de prover toda a energia do corpo alheio para, então, ter à sua, a própria força capaz de sobreviver.
Com a pele rota pelo frio, fome, os nervos quase saltando da epiderme, Hurbinek tinha por todos na sala da enfermaria a compaixão por um velho indo embora. Sua feição era a de um ancião no corpo de uma criança mal tratada, desnutrida, sofrida e moribunda. Cada olhar de resguardo, cada prato de comida, era dado como o último alento a um senhor sofrido e cauteloso, que esperou paciente e prudentemente pela morte.
Hurbinek falou um grunhido identificável até a sua morte. Ninguém na sala de enfermaria soube ao certo dizer se era algo parecido como “mastiklo”, o que em polonês poderia ser fome, comida, pão. Algo assim era dito numa língua de alguns sobreviventes Boemios, diz Levi. Exibia, sem saber, com orgulho sua tatuagem feita pelos alemães com seu número de identificação, com contagem pouco acima de 200 mil. Isso significava que ele chegara ao mundo, e à Auschwitz, bem próximo dos franceses, que tinham os números acima do 200.001. Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 45, sem que ninguém conseguisse identificar o que grunhia. Seu corpo velho de criança com tatuagem numérica fora enterrado ali mesmo na área da enfermaria, próximo da vila Buna-Mònowitz, um conjunto de milhares de blocos de apartamentos de três andares totalmente deformados pelos bombardeios.
Como o personagem de Fitzgerald, Hurbinek é a fábula de Auschwitz, assim o vejo. Se sobrevivesse, Hurbinek talvez fosse capa de alguma revista da década de 50, 60. Quando jovem, contaria como passou seus primeiros três anos de batalha pela vida contra a morte nos campos de concentração. Seu apelo seria mais um dos encampados pelos judeus e mortais viventes contra as atrocidades dos nazistas. Talvez até Fitzgerald se assustasse com tamanha coincidência e, nas edições seguintes, faria os ajustes necessários em seu romance para a devida homenagem.
Mas Hurbinek foi omisso com tudo isso, e viveu apenas para lembrar que a morte era algo a ser vencida a qualquer custo em Auschwitz.