segunda-feira, 3 de março de 2008

Jornalismo tungativo

Guarde bem o nome desses dois países: China e Índia.
Agora, preste muita atenção quando eles vierem combinados em reportagens junto com o nome de um outro país: Brasil.
Essa combinação é vista com uma freqüência avassaladora na mídia nacional, principalmente quando o assunto é justificar o atraso econômico do Brasil. Precisa-se de um bode expiatório, lança-se mão de países grandes - como o Brasil ? com uma economia em crescimento - idem - mas de muitas diferenças - essas muitas vezes camufladas.
O celeuma foi levantado pela Carta Capital, desta semana, com a reportagem: "A Índia dos indianos". O autor: revista Veja. Os dois personagens: Brasil e Índia, ambos colocados lado-a-lado numa tentativa tosca de mostrar as qualidades de um, inflando as falhas do outro.
A Veja cantou a bola da Índia como "um país emergente considerado por muitos analistas mais promissor que a China". Mostrou, em gráficos e numa parafernália de dados estatísticos que o país de Gandi está hoje num crescimento do seu PIB (Produto Interno Bruto) seis vezes maior que o país de Lula, com reservas internacionais duas vezes maiores que o Brasil, e por aí afora. Mostrou ainda uma Índia rica em produção de prêmios Nobel, com alunos formados em alta tecnologia numa proporção oito vezes maior que o Brasil, e por aí afora.
Agora, nesta semana, com uma certa carga de deboche, a revista Carta Capital tentou tirar a prova dos nove, derrubando, com argumentos - um tanto quanto satisfatórios em alguns casos -, todas as megalomanias da Veja. Vamos a elas.
De cara, Carta Capital mostra que a Índia é o pior país do mundo para se fechar uma empresa, na frente, veja só, do Brasil. E continua. Mostra, através de dados, que o Brasil ainda respira um certo ar de liberalismo em termos de comércio internacional. Sua tarifa média de importação beira os 11%, ante os 28% da Índia. Esclarece a comparação de PIB em relação ao custo de vida, numa conta matemática que mostra bem o que sobra e o que não sobra para um país. A média do PIB de Índia e Brasil é equivalente: US$ 500 bi. Mas o custo de vida indiano é metade do brasileiro. O resultado é um PIB duas vezes maior, quando visto sob a ótica do poder aquisitivo.
Tá, tudo bem, mas aí entra um fator importantíssimo: o custo de vida na Índia é baixo porque se ganha pouco. Um exemplo? Um engenheiro de software americano ganha perto de US$ 75 mil. O indiano perto de US$ 21mil. Preço baixo e consumo interno garantido: 300 milhões de indianos considerados "classe média", segundo a Veja, com cerca de US$ 115 por mês de renda familiar e "padrão de consumo comparável à nossa classe C", segundo a Carta Capital. No final, um golpe fatal: o fundamentalismo religioso pode ser considerado como um grave risco dentro da Índia, não pela revista, mas por muitos analistas financeiros.
O que se tire de conclusão? Muitas, mas muitas coisas.
De um lado, a necessidade de não se acreditar em matérias de grandes publicações, simplesmente porque são grandes. Muitas vezes as "pequenas" possuem um poder de liberdade jornalística que salta aos olhos. Isso faz diferença, e muita. Do outro, a intrínseca necessidade de se generalizar discursos econômicos no Brasil: Índia e China viraram exemplos fáceis de potenciais grandes economias mundiais. Num jogo lingüístico espetacular o uso contínuo da expressão acabou por degolar o termo "potenciais" do resto da frase. O que ficou, engana.
Em quem acreditar? Em todos. Duvidando, de todos.
O maior exemplo disso é a relação incrível que se faz com o crescimento extraordinário da China, perto dos 9% ao ano. Um país de população beirando 1,3 bilhão de cabeças é muito provável que metade disso, talvez um terço, consiga dar cabo desse crescimento. Leia-se crescimento com mão-de-obra barata, subsidiada, gastando pouco - leia-se importando pouco (perto do que devia, lógico).
O resultado é um PIB nas alturas (US$ 1,2 tri), governo inflado com gordas reservas cambiais (US$ 383,9 bi) para manipulação mundial e uma população subsidiada (a maioria nos campos, vivendo com menos de US$ 2/dia). Tecnologia? Exportam bem, mas internamente a média é de 19 computadores para cada grupo de mil pessoas, trinta e duas vezes menor que nos EUA, o grande comprador de sua tecnologia. Outro item que salta aos olhos da pungente economia chinesa: de cada dez cabeças, pelo menos sete não possuem saneamento básico; além da incrível história do agricultor Liu Baocheng, condenado à morte por ter transmitido involuntariamente a Sars, a pneumonia asiática.
Por isso, leia até bula de remédio, quando a junção desses três países aparecerem numa reportagem. Com certeza, na maioria das vezes estarão tentando tungar o havido leitor.

Nenhum comentário: